Foi no ano passado — eu me lembro bem — que ele entrou pela primeira vez naquela sala. Ele e mais dois pares de olhos, um felino, outro sereno. Olhava os livros, a luz, o amarelo e o azul das paredes protetoras, o colchão convidativo. Pensava na confusão dos seus dias e nos medos das suas noites. Ou seria o contrário?
O gato, meio a contragosto, cedeu seu trono acolchoado para o menino que, sem saber como nem por que, desatou a falar. Nunca falou tanto. E ele que cantava o ar que respirava, respirou talvez pela primeira vez a vida que guardava. Das suas quimeras ele ordenou enredos, achou motivos, desenterrou verdades — as suas, tão secretas, tão encapadas que ele mesmo desconhecia — e encontrou alívio. Ela o escutava. Com as mãos moldava aquele menino bruto, abria caminhos, dava brilho, dava corpo àquela imensidão. Ele nunca soube como, mas sempre soube que ali podia brincar com seu espaço, andar pelo seu tempo sem que este escosasse, nem que aquele o faltasse.
E foi então que ele pegou sua capa, seu maior orgulho, e começou a desfiá-la até que da fibra fez-se um fio tão fino e tão forte quanto teia. Ela fez com que ele o enrolasse. Com as mãos ensinou-o a tecer não mais uma capa, mas toda uma realidade. O menino sorriu. E nos olhos dela ele viu o sorriso de um homem, o homem que ele sempre quis e nunca soube ser, mas que naquele instante aprendeu a tecer. Com as próprias mãos, com o fio do seu próprio amor.
No seu caminho, o menino-homem hoje veste a jaqueta que ontem foi capa. Há uma etiqueta no bolso interno, aquele junto ao peito, bordada com o nome dela que ele aperta firme sempre que algum vento tenta derrubá-lo e não consegue. Nessa horas ele pára, olha para trás, novamente menino, sorri e pensa com fervor: “Obrigado, Marie“.
Feliz aniversário, meu anjo.