Gênese

Estou antes do tempo. Permaneço na beira do abismo e antes do vôo, na nuvem pesada que paira sobre a tarde quente e abafada de uma cidade abandonada. Sustento na mão articulada o segundo insuportável que separa o último beijo do primeiro gozo. Estou ali, no limiar entre a loucura e a razão onde o foco se perde simplesmente porque esse parênteses, esse quase prenúncio de existência é a distância mais tensa e justa do que é essencial. E sendo assim, aproximo o ser da sua mais profunda solidão.

Antes que tudo comece, antes que surja o primeiro sopro, um quase nada antes de abrir o olho que sonha eu dou forma ao primeiro verbo impronunciado que explode de encontro ao papel original. Escrevo. Lentamente, como o primeiro esticar de asas, a primeira gota de chuva e o primeiro arfar do orgasmo, o tempo responde ao meu comando, alongando-se sobre o planejado traço de tinta. E no primórdio temporal vejo romper o casulo de possibilidades como quem contempla o desdobrar de matizes da aurora.

O instante agora dá lugar ao movimento sinuoso da pena sobre a linha, deitando palavras de várias cores, verbos de muitos tons e frases saborosamente musicais, contornando cenas impossíveis de uma realidade improvável. Não há mais volta. Agora, o delírio ultrapassa a qualidade plana do caderno e toma a dimensão exata de uma imaginação febril. Não rabisco mais palavras, mas desenho no verso mil verdades amorosas e outras tantas dúvidas existenciais. Ergo sonhos, abro caminhos e cubro a substância narrada de vida, rompendo o limite do tempo e perdendo de vez e para sempre o controle do espaço.

Como um deus que se enfastia, lanço meu universo à própria sorte. Meu verbo vibra amiúde ao som de várias vozes. Harmonizado, é um mundo que gira de boca em boca, eternamente inacabado.