Memento
Quando éramos crianças, meus irmãos e eu, visitávamos todo fim de semana a casa de nossos avós. Sábado a materna, domingo os paternos. E domingo, claro, era dia de macarronada, da boa, caseira do incício ao fim, com direito à camiseta manchada e tudo o mais.
O orgulho de minha avó paterna era, e ainda é, o pequeno ipê amarelo em frente à casa, com seus galhos delgados e folhagem delicada. Sempre havia alguns beija-flores ali por perto, em plena Vila Mariana, mas certa feita — não me lembro agora se meu avô ainda era vivo ou não — um deles resolveu eleger o ipê como morada. Não só elegeu, como espantava qualquer ser alado que por ali se aventurasse. Era trabalhador o bichinho, saía logo cedo e voltava no fim da tarde, religiosamente. E pousava, esbaforido e elétrico, sempre no mesmo galho, em frente à janela e de olho na rua. Olhava pra cá, olhava pra lá, pra cá e pra lá, pra cá, pra lá... pra cá... pra lá... pra cá... pra lá... e adormecia. Uma coisinha de nada empuleirada no galho, longe do alcance dos gatos da região e do nosso que imagina se a gente não queria ver o danadinho bem de perto. Puro encanto. Devo ter perguntado tudo e mais um pouco sobre beija-flores pra quem quer que se dispusesse (ou não) a alimentar minha incontrolável curiosidade.
Depois de um período ele sumiu. Voou para algum outro galho, acho. Virou memória. Eu acho que beija-flores não nascem nem morrem. Essas criaturas leves e vibrantes, tão cheias de cor e vida, já foram sonhos e viram memórias. Memórias saborosas como tudo o que aquela língua comprida deles toca. Sonhos valentes e palpitantes. Talvez por isso mesmo não possamos ver suas asas baterem, senão em fotos, pois elas os sustentam acima e à margem do tempo e da razão de ser. Vêm e vão não sei de onde, não sei por quê.