Não sou uma pessoa rancorosa. Raiva mesmo, rancor, pensando por alto não penso em ninguém. E também não vou pensar a fundo, pra quê? Já disse antes, repito agora, não gosto de ter raiva das pessoas e não o faço mesmo. Mas se ilude aquele que pensa que eu gosto de levar desaforos pra casa. Não gosto e, sempre que possível, não levo. Sou tinhoso. Se levo, anoto sem esforço algum na memória. Sim, sou chato. Lembro de todas as minhas mancadas por que não haveria de lembrar das dos outros?
E não só mancadas, pois senão estaria sendo injusto com minha própria memória. Das alegrias, das risadas, dos choros, dos detalhes, lembro de tudo. Minha memória, como já disse, é cruel, emotiva e sensorial. Cheia de gatilhos. Lembro-me a toda hora, basta uma visão, um cheiro, um som pra um um sorriso invadir meu rosto no meio do metrô, pra uma ruga deitar sobre a testa e logo depois sumir. Às vezes, lembro quando estou cantando e minha interpretação adquire outro tom. Às vezes, lembro quando estou regendo e meu gesto se transforma. Minha arte se sustenta de minha técnica, mas se alimenta de minhas vivências, que se nutrem de minha arte…
Eu não esqueço, perdôo com facilidade porque gosto, porque amo, porque me sinto bem. Poucas coisas me dão uma sensação de felicidade tão plena quanto uma amizade fortalecida, revigorada, renovada, um sentimento enobrecido e faço tudo o que posso — e às vezes o que não posso, no meu afã — para estabelecer elos, linkanias, relações, sempre mais fortes, mais verdadeiras, mais profundas. Sentimento de culpa não combina comigo e detesto vê-lo nos outros. É um fardo que ninguém tem que carregar, mas que ninguém, a meu ver, pode abandonar. Se há o fardo, há um lugar para descarregá-lo e pra lá que ele deve ir, nenhum outro.
É por isso que no meu livro nenhum capítulo pode ficar em aberto. Sua tensão inacabada, sem resolução, sua narrativa desconexa. Cada sentença tem a obrigação vital de ser veraz. Na minha história, nenhum personagem simplesmente some. Eu não esqueço de ninguém.