Páginas matinais 1

Meu inconsciente é tão safado que eu sonhei que escrevia essas páginas. Comecei a escrever com os olhos ainda fechados, no papel da minha cabeça, com a tinta escura dos meus sonhos.

Nada realmente é criado. Transformamos a vida aos poucos, que nem um DNA que se reproduz, mas não permanece igual e portanto se torna algo novo. Evoluímos. Como uma improvisação. Um jazz, que é fruto de muitos acordes, muitas escalas, dissonâncias que se entortam e se encaixam até que entrem em harmonia. E repetimos esse processo até que o caminho se forme à nossa frente. O que de repente parece inspirado foi construído arduamente. Pensado, transpirado, testado, reformulado, até que em contração e espasmo é parido.

Mas nada nasce de fato. Tudo é renascido. Criamos como vivemos — uma sucessão de experiências que se encontram e desencontram, até que algo fica, faz sentido, ganha vida. Aquilo permanece, cria raízes e cresce. E o processo se repete, reproduzindo-se, célula por célula, palavra por palavra, nota por nota, num movimento que é livre e coreografado ao mesmo tempo — ordem com pinceladas de caos colorido, brilhante e sombrio, contrastante e, portanto, equilibrado, infinitamente vivo.

Criar pode parecer divino, mas é intrinsicamente humano. Mundano da cabeça aos pés, do coração ao estômago. E como poderia ser diferente? O extraordinário é impossível sem o ordinário — literalmente. O sonho não existe sem a vida desperta ou a noite sem o dia. Queremos crer na inspiração como algo maior, fruto de uma força divina, quando na verdade ela é mastigada, digerida, morte transformada em vida. Criatividade é fruto dos sentidos, sentimentos, tecidos pela nossa própria existência, bordados dentro de nós. Diariamente.

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