Além-mar

Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar

(Cais, Milton Nascimento)

Ele dorme.

E eu, confesso, tenho medo. Medo de que, se o acordar, isso me desperte do meu sonho. Ah, porque eu sonho, sempre sonhei. A diferença é que hoje, ao invés de negar o sonho (ou a realidade), tenho a cabeça nas nuvens e os pés no chão — passar dos 30 e fazer as pazes com seu ascendente tem lá suas vantagens. Eu sei que vou sonhar, eu sei que se ele sumir eu vou ter que me virar na minha ansiedade, mas sei também que eu sou o dono das minhas escolhas e que tudo está aí para ser sentido.

E sei mais. Sei da solidez do meu abraço, da certeza do meu beijo, sei que sou exatamente isso que eu tento e represento ser na encenação de mim mesmo: um porto, uma certeza; terra firme. Eu me invento. E já está na hora de assumir — e não encenar — a minha natureza. Nem por isso não sou livre. Pois quem olha o porto não percebe que este é uma ilusão do imóvel; não nota, desatento, que a água que banha o cais nunca é a mesma e que, portanto, nunca está no mesmo lugar.

O que temos… não sei o que temos. O que ele tem não sei tampouco, pois não me pertence. Sei o que sinto agora, neste exato momento: felicidade, na forma de um calor gostoso, de querer bem; algo que me impele contra a distância. Sinto um tempo devagar quando ele não-está e um não-tempo quando enrosco os dedos em seus cabelos ou acompanho o vai-e-vem do seu ronco, como ondas de um mar profundo tombando em minha vasta costa. E mais não sei. Quando respiro fundo, não importa.

Todo barco retorna ao cais. E quando ele não está, o vento traz do mar o seu perfume.

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