Sonhos sãos

Dias antes — uma semana? mais? — da tia Ignez morrer, ele, sobrinho-postiço de quem ela gostava muito, sonhou que minha avó, que já se foi há mais de oito anos, entrava num táxi daqueles pretos, grandes e antigões com a minha tia, que deitava a cabeça em seu colo. Minha avó então dizia calmamente que estava levando minha tia ao hospital porque ela estava muito doente. E de fato levou.

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Na madrugada de terça-feira ela também sonhou. Viu nossa tia na primeira casa da vila em Santo Amaro, onde mãe, vó, primos e tias moraram. No sobrado, viu tia Ignez com uma blusa salmão e uma calça de um tecido nobre, quase um risca-de-giz. O tecido, minha mãe disse pra ela, tia Ignez ganhou da irmã mais velha e não chegou a costurá-lo; vestiu-o mesmo assim, linda. Estava bem, nutrida e saudável, sem o menor resquício de doença. Foi ali, na casa daquela vila onde tantos fins de semanas sorriram, tantos natais, tantos muros e quintais, tantos améns, que tia Ignez disse estar feliz e aprendendo muito.

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Depois do velório, não sonhei; também não chorei mais. Se falaram comigo, não lembro. Mas acordei com uma certeza de paz no coração; paz e tranqüilidade, o alívio que vem depois da dor aguda e profunda, a dor que paralisa, a dor que revolta. E agora não há mais dor, a revolta é uma lembrança levemente ruim; tia Ignez venceu a doença, muito além do corpo padecido, e foi cuidar da outra vida. Aqui, acordei vivo e com saudade. Que venha a saudade, é sinal de vida vivida.

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Eu sonho com dias dourados.

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“Vivemos nossas vidas, fazemos nossas coisas, depois dormimos — é simples assim, comum assim. Alguns se atiram da janela, outros se afogam, tomam pílulas; muitos mais morrem em algum acidente; e a maioria de nós, a grande maioria, é devorada por alguma doença ou, quando temos muita sorte, pelo próprio tempo. Existe apenas isto como consolo: uma hora, em um momento ou outro, quando, apesar dos pesares todos, a vida parece explodir e nos dar tudo o que havíamos imaginado, ainda que qualquer um, exceto as crianças (e talvez até elas), saiba que a essa seguir-se-ão inevitalmente muitas outras horas, bem mais penosas e difíceis. Mesmo assim, gostamos da cidade, da manhã, e torcemos, como não fazemos por nenhuma outra coisa, para que haja mais.

Só Deus sabe por que a amamos tanto.”
(As Horas, Michael Cunningham)

Domingo no parque

Depois de “O Monge e o Executivo”, mais um best-seller da auto-falta-de-ajuda:
“O Tenor e a Consultora“. Breve, na sua livraria, ou no parque mais próximo.

Como é que pode? O cara consegue reger uma orquestra e nem achar difícil, mas não consegue rebater uma bolinha de frescobol duas vezes na mesma direção. :P

Da vida, dos céus e do adeus…

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Olha só, minha tia querida,
É de madrugada ainda
Levei um susto danado
Com o telefonema
Assim nesse horário
E era você mesmo,
Que tinha ido embora.

Mas a passarinhada
Já tava lá fora,
Em polvorosa,
Piando bonito pra chuchu
Pra se despedir de ti.

E foi quase perfeito
Acordar assim cedinho
E ouvir sabiá, caga-sebo, bem-te-vi, sanhaço…
Todo aquele bando de passarinho
Piando junto em sinfonia,
Não fosse isso uma despedida.

Um beijo enorme!
Marina

Improvável

Ontem eu sonhei que me preparava pra reger um puta de um concerto (mas diante de uma orquestra com meia dúzia de músicos e uma trompa desafinada) num palco montado diante de uma praça imensa, num parque lotado de gente que mais parecia comício político, de tanta agitação. Lá nos cafundós da Rússia.

Hoje eu sonhei que tinha de provar que dada uma circunferência e um número “xis” de pessoas, sempre é possível colocar essas pessoas sobre a circunferência de modo que a distância entre uma das pessoa e as outras seja de pelo menos 200 metros. Mais alguma coisa a ver com o raio que eu já esqueci. E eu acordei pensando: “senão vejamos… se a área interna à circunferência é π*R² e o perímetro é 2π*R, então…”. Posso parar ou preciso explicar que não faz sentido?

Amanhã eu quero acordar sonhando que estou vendendo sanduíches na praia.
Ou flores, pra manter o ar poético-nonsense, mas que seja na praia.

Eleicéus!

Eu fico terrivelmente impressionado com a memória curta, a argumentação parcial, seletiva, tendenciosa, o medo parvo, o umbiguismo — isso é o pior de tudo, acho eu —, o preconceito arraigado por trás das opiniões que eu ando ouvindo e a incapacidade crônica das pessoas de observar as ligações e associações que ocorrem ali logo atrás do executivo; a teia que sustenta e limita a aranha.

É obvio que toda a merda que vem à tona me enoja, mas não menos nem mais se vem de direita ou de esquerda, e é muito pior ver as pessoas entrando no jogo. (Porque afinal é muito simples, a gente vota no que quer, né? Eu é que complico porque a gente vota nisso que tá aí, sendo mostrado. Pois sim!) As pessoas sempre entram no jogo. O conceito de “massa” é algo muito mais abrangente, subliminar, epidêmico do que se imagina. As eleições têm me lembrado o brilho alucinado nos olhos de uma horda de fanáticos. Santo Deus, danou-se! A razão já era.

Da minha parte, deu. Eu não vou tentar convencer ninguém a mudar seu voto, não vou entrar em nenhuma discussão que é intrinsecamente inútil pra não ter que ouvir argumentos cretinos que mais parecem picuinha da turma da rua de cima com a turma da rua de baixo. E se você não tem nada acima do óbvio ou do ridículo pra me dizer, então nem diga. Poupe-se; poupe-me. O cenário político já é deprimente o suficiente sem demonstrações míopes de “cidadania” e “consciência”. Se você só sabe fazer barulho durante as eleições, então, por favor, vote em silêncio.

Asperges me

“Ay mi Dios que cousa ha sido
Que sufrais frio y dolor
Todo lo haze el amor

Ay mi señor que os veo
Vuestra sangre derramar
Esto solo es començar
A cumplir con el deseo…

Um concerto maravilhoso; sacro, no meu sentido particular.
Mas a vida não dá mole e já me pega, cansado, pelo flanco.
Eu me pergunto: quando? E continuo, porque aqui não quero ficar.

…Ay mi Dios que cousa ha sido
Que sufrais frio y dolor
Todo lo haze el amor”

Eleichute

Quer saber? Povo burro! Estúpido! Demente! Não consegue ser coerente nem na hora de eleger seus candidatos, vai querer reclamar é do quê depois?

Queria ter nascido pescador em Fernando de Noronha! Ou mais: queria ter nascido golfinho — melhor que “anta”! Qualquer sistema tribal que tem um deus-vulcão no meio da sua ilha como divindade maior é mais decente que isso aqui. Valei-me!

(Maluf, São Paulo? MALUF??? Como é que vocês têm coragem?…)

Eleichão

O “povo”, essa entidade… ok, sem adjetivos, essa entidade, festejando o segundo turno à presidência — e quando eu digo festejar quero dizer depositar suas esperanças de correção, integridade e efeito — enquanto temos Maluf, Russomanno e Clodovil como deputados federais mais votados neste estado, Collor como senador eleito no Alagoas e outras barbaridades. Eu ia até reclamar do Serra ser eleito governador com o ex-mandato de prefeito nem na metade, mas o desgosto é tão grande que eu acho melhor ficar felizinho com o Suplicy no senado e olhe lá.

Pára o ônibus que eu vou descer; ou melhor, não pára, eu quero me jogar.