Tava lendo o Carpe e me bateu uma saudade tão grande da minha avó materna. Gostava tanto da minha vozinha.
Minha vozinha não era uma grande cozinheira, costureira, até onde eu sei. Minha mãe é a quarta e última filha de um casamento tardio, portanto quando conheci minha avó ela já era bem velhinha. E o traço de senilidade que ela tinha mais forte era a memória. Imaginem uma pessoa com seus noventa anos que lotou completamente a sua memória. Era a minha vozinha. Todo mundo na família então já sabia, se passar pela vó e ela fizer aquela cara de “oi, tudo bem”, cumprimente, mesmo que seja a quinta vez. Eu já estava pagando meus pecados na Matemática faz tempo e toda vez que ela me via me perguntava como é que estava o estudo de piano. E dizia que gostava muito de estudar, mas que infelizmente ficou muito doentinha e teve que ir pro interior com a irmã e parou na quarta série… Ouvi essa história por anos a fio.
Engraçado, minha vó tinha uma veia meio poeta. Tem vários papéis, caderninhos escritos, com poemas, textinhos dela e eu vejo isso muito forte na minha mãe. Entretanto, para alguém que nasceu em 1905 e era muito carola, acho que ser escritora não foi uma hipótese que ela cogitou. Uma pena.
Eu não sou católico e acho ridícula a expressão católico não-praticante. É que nem dizer que eu sou um maratonista, mas não corro. :) Acredito em alguma coisa, deus, força, gênese, mas não na Igreja Católica. Mas minha avó era católica apostólica romana e, para sorte minha e dos meus irmãos, segundo meus primos mais velhos, ela já estava velhinha demais para pegar muito no nosso pé. Aprendi o Pai Nosso, a Ave Maria e… mais alguma coisa que eu já esqueci. Fui batizado e só, nada de primeira comunhão, crisma que minha vó era católica, já meus pais, nem tanto.
Entretanto minha vó tinha um traço cristão que me marcou durante toda a vida. Um traço, inclusive, que muito cristão de araque deveria ter. A família sempre foi pobre. Meu avô foi um camponês italiano que lutou na primeira guerra mundial — vai vendo —, acho que não tinha um ano quando ele morreu. O que ele veio fazer em São Paulo eu não sei? Minhas tias, todas professoras de primeiro ou segundo grau. Pergunta se algum dos filhos quis ser professor. Não obrigado. Mas minha avó dava o que tivesse na mesa, em pleno almoço de domingo, se alguém passasse na rua pedindo. Eu, segundo minha mãe, adorava, inclusive, bater papo com os pedintes. Sentava no muro e ficava falando enquanto eles comiam. Percebe-se que eu gosto de falar. :)
Certa feita minha avó veio passar uma tarde aqui e voltou preocupadíssima com a situação da família. De todo o almoço, tudo que ela registrou foram dois bolinhos de arroz que ela comeu antes e algumas uvas que ela comeu depois. Chegou azucrinando minhas tias, que precisavam fazer alguma coisa, que a situação na casa da Béco devia estar muito ruim porque só serviram pra ela dois bolinhos. LOL! Esse causo já faz parte do folclore familiar.
Já muito velhinha, minha avó passava algumas tardes aqui em casa que minhas tias tinham que ir trabalhar. E era eu, geralmente, quem ia passear com ela. Por passear entenda uma volta no quarteirão que levava pelo menos meia hora. Mas era um horário em que eu podia conversar com ela, repetir as mesmas respostas, ouvir as mesmas histórias e olhar para aquele rosto de cabelos branquinhos, para aquela pequena menina velha, aquela santinha pequenina ali do meu lado. Tenho fé de que, se Deus existe, ela tá sentada ao seu lado. E é bom que ele tenha fé de que, se ela não está, vai ouvir poucas e boas quando minha hora chegar. Ah vai… eu vou pro inferno, mas vai.
Sinto muita saudade da minha vozinha. Vejo ela nas minhas tias, mas sobetudo na minha mãe. E quando rezo, é pra ela que peço ajuda. Tenho certeza de que ela me ouve.