Páginas matinais 1

Meu inconsciente é tão safado que eu sonhei que escrevia essas páginas. Comecei a escrever com os olhos ainda fechados, no papel da minha cabeça, com a tinta escura dos meus sonhos.

Nada realmente é criado. Transformamos a vida aos poucos, que nem um DNA que se reproduz, mas não permanece igual e portanto se torna algo novo. Evoluímos. Como uma improvisação. Um jazz, que é fruto de muitos acordes, muitas escalas, dissonâncias que se entortam e se encaixam até que entrem em harmonia. E repetimos esse processo até que o caminho se forme à nossa frente. O que de repente parece inspirado foi construído arduamente. Pensado, transpirado, testado, reformulado, até que em contração e espasmo é parido.

Mas nada nasce de fato. Tudo é renascido. Criamos como vivemos — uma sucessão de experiências que se encontram e desencontram, até que algo fica, faz sentido, ganha vida. Aquilo permanece, cria raízes e cresce. E o processo se repete, reproduzindo-se, célula por célula, palavra por palavra, nota por nota, num movimento que é livre e coreografado ao mesmo tempo — ordem com pinceladas de caos colorido, brilhante e sombrio, contrastante e, portanto, equilibrado, infinitamente vivo.

Criar pode parecer divino, mas é intrinsicamente humano. Mundano da cabeça aos pés, do coração ao estômago. E como poderia ser diferente? O extraordinário é impossível sem o ordinário — literalmente. O sonho não existe sem a vida desperta ou a noite sem o dia. Queremos crer na inspiração como algo maior, fruto de uma força divina, quando na verdade ela é mastigada, digerida, morte transformada em vida. Criatividade é fruto dos sentidos, sentimentos, tecidos pela nossa própria existência, bordados dentro de nós. Diariamente.

7 anos

“Seja lá quem te mandou
Meu amor te recebeu
E hoje o céu de sua estrela
Menino, sou eu”

O calendário me recorda.

Mas como é possível esquecer o que é cotidiano? Seria o tempo tão descuidado a ponto de nos esquecer? Não. O tempo é feito de nós. Ele existe porque existimos. Tempo é o que guardamos em nossas dobras, é o que encontramos em nossas mãos. Ele se prende em cada laço, em cada passo e habita os cômodos do lar-coração. O tempo pulsa.

Cozinho a lasanha de que você tanto gosta e desconfio que o principal tempero é o tempo — de descobrir-se, de conhecer-se, de entender-se e de amar. Amar o tempo que avança feito rio pelo caminho torto que é você, que sou eu, que somos juntos. Amo-nos faz tempo.

Vivo

Estou
nas dobras
das horas
que se revelam
à beira do olhar.

Como trazes
o que me é puro
e recordas de mim
com o fogo-coração,
tua luz dourada
me dá vida.

Pequenas bodas

Há seis anos, te conheci. E encontrei mais um pedaço de mim. Porque, veja, eu também sou feito, hoje, dos teus sorrisos e lágrimas, medos e sonhos. E é tão mágico isso que eu quase me esqueço de que o que temos é fruto de uma árvore regada diariamente, não o capricho de um destino circunstancial e nada determinante.

Não, o que temos não caiu do céu, mas cresceu em nós. E a mágica é justamente essa, nossa alquimia — o querer que transforma nossas pedras em ouro.

(…)

Levanto

Troco Mendelssohn
Por Piazzolla
Enquanto encho a taça
Esquento a sopa
Observo a praça

A vida é uma vitrola

Homo fodiens

O que nos difere dos outros animais não é a nossa inteligência. Há, na natureza, mais provas de inteligência e engenhosidade do que nossa vaidade gosta de admitir. A inteligência não é apenas uma titulação ou o quanto somos capazes de filosofar, mas algo que surge com a evolução e a adaptabilidade. Nossa inteligência é, em boa parte, obra do acaso. A diferença é que nós aprendemos a deixar isso bonito no currículo.

Também não é nossa capacidade de amar. Por mais que gostemos de nos sentir especiais, amor e compaixão — assim como medo, raiva e outros sentimentos e emoções considerados menos nobres — estão presentes no reino animal e são componentes importantes da preservação das espécies. Nosso comportamento social também não é novidade. As formigas da sua cozinha também são extremamente sociais, mesmo sem fotos no instagram.

O que nos difere — praticamente nos expulsa — do reino animal é que, mesmo com um telencéfalo altamente desenvolvido, mesmo com um fantástico polegar opositor, somos a única espécie capaz de foder com tudo de forma absolutamente magistral.

Vem,…

20120621-112115.jpgE lá se foram 2 anos… Foram, não, vieram — com você. É muito tempo. É pouco tempo. É, na verdade, um tempo bom o nosso. Os dias antes de te conhecer, parecem outra vida; os dias adiante, um sonho. E, mesmo assim, eu estaria mentindo se dissesse que não sei viver sem você — a vida me deu isso —, mas quem disse que eu quero?

O que você quer? O que nós queremos?

Sim, eu quero viver com você; eu sou mais feliz. Eu quero que você seja mais feliz. Eu acredito que nós somos mais felizes assim. O que interessa não é a burocracia do dia a dia, tão pragmático. O que eu quero são os dias ditosos ao teu lado.

O que importa é que o meu amor já fez bodas faz tempo. E o meu coração — eu nem sabia — casou com o teu no dia em que te viu.

…me dá a tua mão?

 

Desnamorados

Ele não a ama, é visível no modo como disfarça uma distração enquanto ela fala. E ela fala, pergunta, explica, segura o seu rosto como se o vento pudesse levá-lo para longe. Mas a verdade — ela não sabe — é que procura ali naqueles olhos entediados uma gota, um risco, qualquer lampejo de um sonho que ele, de fato, nunca foi.

Ele já está a léguas dali. E não a ama. Inventa problemas que não existem porque não tem coragem de dizer a mais simples das verdades. Tem medo que ela chore e faça um baita de um drama. De novo. Medo, não: pânico! Mas o medo maior e visceral é o de ficar sozinho. Ele às vezes quer que ela suma, mas não aguenta a solidão e sua falta de propósito.

Deus, como ela é chata! Insuportavelmente grudenta — ele pensa. Ela não se dá conta do quanto ele é ranheta. Ele vai transformando sua falta de coragem em mau humor, dia a dia. Ela atinge níveis psiquiátricos de ciúmes.

Vão se casar, provavelmente. Depois de alguma briga concluirão que é o melhor porque… é o melhor. Uma cerimônia simples é o que ele quer, mas o véu dela já tem uns dez metros.

Vão se casar, mas não agora porque o trem chegou e ele se despede com um semi-beijo — um pé na plataforma, outro já dentro do vagão do metrô —, enquanto ela jura que é feliz.

Zen

Acordei e logo peguei 3 pedras que me enchiam bem a mão — senti-lhes o peso. Respirei fundo… Com leveza, em cada uma escrevi “delicadeza”, “gentileza” e “compaixão” e as pus no chão do jardim, onde é o seu lugar.

Direto ao ponto

Você é a pessoa mais doce,
o tempo mais certo,
a luz mais brilhante
que eu já conheci.
Você, meu amor,
é toda a certeza
que eu um dia perdi.

(para Epa)

— Amor, meu grande amor,

Entre hiatos e distâncias, resta sempre
o amor; sempre a imagem lenta
de um olho-no-olho por sobre a taça,
o arabesco dos dedos entre os talheres.
É sobre as mesas que os laços
se estreitam e se renovam,
quando largamos garfos e facas
e pousamos as mãos, sempre nuas,
sobre a toalha branca. — O amor é noturno
e tem sabor de café da manhã.

(para Fabi)

Marieversário

Lá pelos idos de 2002, conheci várias pessoas de suma importância em minha vida, cada uma por um ou mais motivos, tempo, estação. Eu era então uma força bruta, quase violenta na minha vontade de sentir, amar e ser — muito do que eu fui e sou e fiz marcou as minhas relações comigo e com os outros para sempre. E então veio Marie. Enorme, abrangente, bela e plena, como deve ser o amor. Marie nunca esteve certa, ela sempre esteve ali. E me mostrou que o amor vem antes da crítica, antes da dúvida, antes da prática. Marie me mostrou que o amor não tem raízes, o amor é a raiz! E que ele é tolerante, mesmo não sendo conivente. Inclusivo, mesmo que reservado. Zeloso até quando — e principalmente — ausente. Marie deu forma à minha força bruta e me ajudou a enxergar que o amor é Deus — não o contrário. Por isso e por tudo é que, em Marie, nunca perdi minha fé.

Te amo tanto e te amo sempre, Marie, meu grande amor.

FELIZ ANIVERSÁRIO!!!

Longe é perto

E um beijo para Guiu e seu coração selvagem, tão amado — tua-minha voz, minhas-tuas palavras —, neste dia em que tudo pode, sabemos tudo. Amém! :-*

Decadente

E hoje este blog completou 10 anos.
Clarice Lispector completaria 90.

Adivinha: quem está mais viva?

Under my skin

Quando a dor deixa marcas, não tem jeito — é preciso rasgar e jogar a pele fora, com o risco de não se ser mais.

* escrito um dia aí e esquecido nos rascunhos.

Solo

Eu tenho que abraçar minha solidão — minha mais íntima e secreta solidão — para abraçar a mim mesmo.

Suplício

E quando tudo o que se pede
e tudo o que se pode é meter
a mão no peito, rasgando
violento, contrafeito
a própria alma?

Oi, tudo bem?

Eu não tenho mais 15 anos. Quando você chega, eu não rio nervoso. Não mostro mais minhas qualidades como se fossem parte da minha coleção de figurinhas. Prefiro que você veja logo os meus defeitos. Prefiro estar nu. Se você passar por eles, então podemos conversar.

Mostrarei minhas boas faces uma de cada vez. E devagar, para que você se acostume a elas, para que você não ache que eu sou mais do que sou. Eu não posso com a expectativa, ela me sufoca. Ela me tira daqui de onde estou e me leva para onde não posso estar — é uma tortura.

Venha com a calma das nuvens e a urgência das chuvas. Seja como aquele vento que carrega lufadas, abraços mornos que cavalgam lambendo a campina verde, e te banham de ar. Mas não me carregue, que eu custei a caminhar.

E se você conseguir ver o que eu não mostro, ler o que eu não escrevo, ouvir o que eu não digo, não me conte! Espere, vá com calma, tome cuidado. Que para te conhecer, eu vou me conhecendo aos poucos.

Babilônia

Diretamente do 11º andar, o meu jardim! E minha inabilidade em tirar uma foto decente com uma câmera compacta e tanta luz contra.

Fomos eu e a super-mãe sexta passada ao CEASA atrás de vasos, terra e plantas de gente grande — sim, porque as pequenas, a gata-exu não perdoa. E depois de enfiar tudo num carro comum e passar horas arrumando e espalhando terra pela sala, eis o resultado.

E agora eu tô torcendo para que os bambus resistam à adaptação. O variegata (menor, à direita na foto) se ressentiu logo no dia seguinte, e pareceu secar um pouco, mas já demonstra sinais tímidos de recuperação. Essa dobra no topo do caule, que não é natural, agora me pareceu meio brutal porque a ponta é a que tá sofrendo mais para se recuperar. Eu aproveitei e tenho borrifado água na folhagem. O mossô (grande, à esquerda) tava lindo e verdejante, mas, faz uns dois dias, resolveu amarelar um pouco e tá perdendo folhas rapidamente. Pelo que eu pesquisei não é incomum acontecer e depois de adaptado as folhas nascem todas novamente. Oremos!

Os gatos, como se vê, já estão perfeitamente integrados à paisagem. Integrados demais, a julgar pelas marcas de patas na terra dos vasos…

Lorem ipsum

No fim do ano este blog completa 10 anos. Por incrível que pareça, ele conserva todos os seus posts, desde o início. Muito já não condiz com a realidade e o seu começo soa ridículo, mas sei lá, já foi realidade um dia — caminho, escada.

E eu sou taurino, né? Tenho essa coisa de carregar tudo comigo.

Eu sinto que perdi um pouco o jeito, não tenho mais a mesma vontade de escrever aqui. Mas pela primeira vez sinto necessidade, como quem volta às aulas de dança ou à natação. O exercício me ajudava, tanto nas horas boas, quanto nas ruins, mas foi um pouco por cansar da lamentação que eu fui largando. Isso e um sentimento besta de por que e pra quem eu falava tudo isso.

Pois bem. O problema da lamentação não era o blog, era eu, como todo o resto. Como sempre, como todo mundo. Assim como o legal não é o blog, sou eu — ele me reflete, em partes, blocos, em fluxos, em silêncios. Minha filosofia é barata, mas é minha. E às vezes minha rima até é rica. Mesmo miseráveis os poetas, os seus versos serão bons — mas aí quem disse foi o Chico, eu só acredito.

Sem hipocrisias. Quem não quer se expor, não mantém um blog. É (também) um exercício de ego, bem ou mal explorado. E pensando bem, deixe que digam, que pensem, que falem, como diria Jair Rodrigues. Não tô devendo nada pra niguém.

Da imperfeição das coisas

“…In povertà mia lieta
scialo da gran signore
rime ed inni d’amore.
Per sogni e per chimere
e per castelli in aria,
l’anima ho milionaria…”

Eu me apaixono pelo que é perfeito e não se sabe.

Desjejum

É sobre as mesas que os laços se estreitam e se renovam, quando largamos garfos e facas e pousamos as mãos, sempre nuas, sobre a toalha branca. — O amor tem sabor de café da manhã.

Todo dia ela faz tudo sempre igual

Segunda-feira, dia internacional do #mimimi, da saudade, da dieta, da preguiça, da to-do list, de perder a hora, de acordar pra vida… e também do novo. Quer dizer, dia de tudo aquilo que a gente um dia vai fazer. Mas hoje, não; amanhã, talvez. Melhor seria chamar de dia do de novo.

(E calhou que hoje é o Dia Internacional da Mulher, mas poderia muito bem ser o dia internacional da TPM. A semelhança é patente: em qual outro dia um homem não sabe muito bem se o que vai dizer inspira amor ou ódio?

Enfim.)

Pra mim, segunda-feira é o dia do sonho acordado. É aquele dia em que você não quer, mas tem que; ou quer, mas não tem como. Ou como @giulieta disse hoje: “na segunda feira me sinto uma penélope desfazendo e refazendo as rendas das cores tecidas no final de semana”. Perfeita.

É assim que eu me sinto. E são tantas as cores, os sabores e o que sentir que a abstinência é quase uma síndrome; um ensaio do vazio. Me pego pensando no que estou sentindo e no que estava sentindo e no que (acho que) vou sentir e sei que essa é a armadilha que eu mais tenho que evitar. Então, contrariando a preguiça, a languidez e a melancolia, pra mim as segundas-feiras têm de ser cheias, ocupadas, movimentadas. Só assim pra eu me arrastar pra fora do perigoso devaneio e manter o fim de semana com seu encanto intocado, preservado no que ele é, simples e precioso, sem ponderações inúteis; mas lá, no fim de semana.

Ainda assim, segunda-feira é o dia de uma música na cabeça, no repeat. Uma tentativa sentimental de agarrar o tempo pelo rabo.

Ironicamente, o tempo taí pra ajustar tudo, tecendo seus dias com calma e paciência, correndo solto feito rio. (E rio represado transborda, inunda, invade, afoga.) Só é preciso seguir a trama, sem medo de se perder ou se enroscar. A sensação de deslocamento é ilusória, já que o tempo e o espaço das coisas nos habita (e não o contrário, como se crê). Pois o aqui e o agora é um só — somos nós.

Algumas considerações

Ontem eu fiz uma escolha aparentemente simples, mas importante; rápida, porém muito pensada; sem alarde, só que perceptível: escolhi a mim. Tenho feito essa escolha com frqüência.

Se tem uma coisa que eu aprendi é que não interessam os grandes motivos ou situações, é o gesto que importa. Nunca abra mão de si mesmo porque você é o que sempre vai te fazer mais falta. Ceder é importante? Claro! Mas quem muito abaixa, mostra a bunda, já dizia o ditado. Ninguém te preserva quando a corda aperta, então não a deixe apertar. Aliás, nunca deixe que cheguem com ela perto do teu pescoço. Fora isso (o que é de medida absolutamente pessoal, admito), doe-se o quanto quiser e puder, de peito aberto — faz a vida valer a pena.

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Eu já desisti de explicar pra faxineira que nariz de porco não é tomada. Já tô na fase de achar ótimo quando ela vem, faz a faxina e não estraga nada. Por que eu vou perder meu tempo explicando que a fruteira não é porta-treco e que a bandeja (linda!) que enfeita o móvel não é o lugar dos fones de ouvido (enormes) do piano? Afinal de contas, eu tô falando da pessoa que resolveu guardar a furadeira dentro do cesto de roupa suja. Quédizê…

Taurino sofre!

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Os gatos agora resolveram mordiscar as pontas dos lápis aquareláveis que ficam em cima da minha mesa. Eu duvido que o gosto disso seja bom, mas vai entender.

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Levei uma surra da menina ao meu lado ontem na esteira. Sabe o Coiote correndo e o Papa-léguas disparando? Marromeno. Humilhação pura. Eu suando em bicas; ela linda, loira, gostosa e perfeita.

Fui comentar com o instrutor amigo e ele emenda:

— É, a genética masculina favorece!

Pausa.
Engasgo.
Espanto.

— Cumequié?
— Ela é operada.
— Quer dizer que ela é ele, digo, era ele? Agora ele é ela?
— Ahã!
— Sensacional!

Fiquei pensando se deveria ou não contar pro resto da mulherada da musculação, mas achei que já havia inveja suficiente no ambiente — sério, ela era um avião, zero cara de traveco.

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E quem diria: eu estou correndo, e bem. Sim, senhoras e senhores, 10Km em menos de 1h ou meus batimentos não sobem o suficiente pra atingir a zona de queima. De banha, claro.

Bye bye, pneus! Foi uma longa e compartilhada existência, mas vocês vão; eu fico. E as calças caem, que eu já não tenho mais furo nos cintos.

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Eu queria que o resto fosse assim fácil. Mas é mais fácil perder peso que ganhar juízo. Enfim, uma conquista de cada vez.

Alta tensão

Hoje a ansiedade (misturada com a frustração) bateu. Até que demorou…

E o que eu fiz? Ora, qualquer coisa que uma pessoa sensata faria: QUALQUER outra coisa!

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Passou. Ufa!

Libera me

Liberdade é uma coisa engraçada, né?

Metade das pessoas que se consideram livres, na verdade, estão sempre fugindo. E boa parte das que anseiam por liberdade, na verdade, elas mesmas se prendem — seja lá ao que for.

Eu penso, do alto da minha ignorância, que estar livre, de fato, é estar em paz com seus próprios grilhões.

Além-mar

Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar

(Cais, Milton Nascimento)

Ele dorme.

E eu, confesso, tenho medo. Medo de que, se o acordar, isso me desperte do meu sonho. Ah, porque eu sonho, sempre sonhei. A diferença é que hoje, ao invés de negar o sonho (ou a realidade), tenho a cabeça nas nuvens e os pés no chão — passar dos 30 e fazer as pazes com seu ascendente tem lá suas vantagens. Eu sei que vou sonhar, eu sei que se ele sumir eu vou ter que me virar na minha ansiedade, mas sei também que eu sou o dono das minhas escolhas e que tudo está aí para ser sentido.

E sei mais. Sei da solidez do meu abraço, da certeza do meu beijo, sei que sou exatamente isso que eu tento e represento ser na encenação de mim mesmo: um porto, uma certeza; terra firme. Eu me invento. E já está na hora de assumir — e não encenar — a minha natureza. Nem por isso não sou livre. Pois quem olha o porto não percebe que este é uma ilusão do imóvel; não nota, desatento, que a água que banha o cais nunca é a mesma e que, portanto, nunca está no mesmo lugar.

O que temos… não sei o que temos. O que ele tem não sei tampouco, pois não me pertence. Sei o que sinto agora, neste exato momento: felicidade, na forma de um calor gostoso, de querer bem; algo que me impele contra a distância. Sinto um tempo devagar quando ele não-está e um não-tempo quando enrosco os dedos em seus cabelos ou acompanho o vai-e-vem do seu ronco, como ondas de um mar profundo tombando em minha vasta costa. E mais não sei. Quando respiro fundo, não importa.

Todo barco retorna ao cais. E quando ele não está, o vento traz do mar o seu perfume.

Jardim

Juntou seus papéis embaixo do braço, meteu alguns sonhos nos bolsos, apressado, e foi para a rua — era a vida que passava.

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Algumas coisas que sinto não permito que ganhem palavras antes da hora, nem mesmo em pensamento, pois suas formas são como prisões. Seria como podar uma planta precipitadamente, impedindo-a de crescer e abrir todos os seus ramos.

Outras, arranco logo é pela raiz.

Desapego

A sensação é de entrar na sua própria casa abandonada. Olhar para teias de pensamentos e sentimentos empoeirados — alguns dos quais a gente tenta inabilmente varrer para debaixo do tapete — e não saber muito bem por onde começar.

Acho que é esse o problema: ter motivo. Porque, na verdade, acho que eu espero uma grande inspiração para voltar a escrever. Senhoras e senhores, ela não existe. O problema de um blog sem tema definido é que você não tem onde se agarrar a não ser em você mesmo.

Oi? E quem disse que eu quero isso? Ironicamente, escrevo logo depois de dizer que “acho que é hora de fechar as janelas…” E teve quem pensasse que eu me referia a desligar o computador ou me preparar para a próxima chuva. Ou não. Melhor assim. Mas as janelas eram outras.

Aqui não existem mais algumas parcerias de outrora. Não sei nem o quanto de mim ainda existe, e não digo das palavras, mas do ato. E, no entanto, ainda sou meu melhor parceiro. É que de repente, entrar aqui e escrever me pareceu tão anacrônico…

Mas sigamos. Navegar, navegar…

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Os gatos seguem cada vez mais lindos e cada vez com mais personalidade. Apesar da melancolia com que olham pela janela muitas vezes, acho que eles sabem ser felizes. A Menina com certeza, o Rabicó tem um olhar mais humano que às vezes me espanta. O que será que eles sentem? — o pensamento não me interessa nem o meu.

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As flores resistem bravamente nesse calor modorrento e compõem a minha mais linda metáfora.

(des)continuum

Tanto tempo que eu não apareço por aqui…

Pessoas, eu não preciso dizer que isto aqui não obedece mais, nem tempo, nem espaço, né? Só pra constar.

Viver e morrer numa noite transfigurada

Faz tempo, mas eu sou lento.

Passou meu aniversário e eu nem disse nada. Muita coisa rolou, na verdade, mas eu tenho deixado passar. Sei lá.

Três grandes ondas mexeram comigo na semana do meu aniversáro, em medidas e porporções diferentes e ortogonais. Três grandes vagalhões, cada um me pegou de um jeito.

Chegando aos trinta e três, gosto cada vez mais dos meus aniversários. Não pela festa em si, mas pelo momento. É quando eu morro e vivo ao mesmo tempo. É quando melhor deixo que algo em mim caia por terra e outro algo se alevante. E há, na alegria, um quê de esperançoso que inunda essa melacolia que ronda os meus dias.

Fiz o que queria. Desconfiio que nunca terei uma casa grande o suficiente, então vou lotar o espaço que tiver. De amor. Lúcido, bêbado, tímido ou desbragado. É disso que eu gosto! De rostos felizes, olhos brilhantes e multi-apetites saciados. Eu gosto é do riso farto.

+

Perdi um amigo. Não era um amigo particularmente íntimo, acho que nunca nos demos essa chance, infelizmente — pra não ser injusto nem com um, nem com outro. Não importa. Pessoalmente, me doeu muito mais a dor inflingida aos amigos em comum do que a que era minha de fato. Eu sei que é estranho dizer isso — e até socialmente questionável —, mas é um fato que não posso negar. Não sei se é a relação comparativamente mais tranqüila que eu desenvolvi com a morte nos últimos anos e se ela, portanto, não me afeta como à maioria, ou se eu não me deixo afetar. Não sei, não sei. Fato é que eu sinto falta da pessoa enorme de quem meus amigos sentem falta, mais do que daquele pedacinho de pessoa apenas que eu pude conhecer. Não sei se pra alguém isso vai fazer sentido, mas é o que eu sinto — ou o que eu acho que sinto. Eu apenas gostaria que tivesse sido diferente, se é que era possível. E tenho sentimentos bons, desejos de boa viagem, acho que é o mais importante.

+

O concerto foi do caralho! E você perdeu. Você perdeu muita coisa, na verdade, mas isso é apenas o que eu acho. E é justamente pra não ficar achando que eu abro mão — assim você não perde nada; nem eu.

+

Te ver não foi fácil. Dois anos e quatro meses depois, eu achei que estava pronto — e estava! —, mas não foi fácil. Talvez porque reencontrar alguém seja reencontrar a si mesmo, alguém que não existe mais.

De pœnis inferni

Eu queria dormir hoje e só acordar mês que vem.
O outro lá que morre e eu aqui me matando — nem ressucitar eu sei!

Ah, esse inferno astral promete…

Lua cheia

“Ó, lua branca de fulgores e de encanto,
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo,
Vem tirar dos olhos meus, o pranto,
Ai, vem matar essa paixão que anda comigo.

Ai, por quem és, desce do céu, ó lua branca,
Essa amargura do meu peito, ó vem e arranca,
Dá-me o luar da tua compaixão,
Ó, vem, por Deus, iluminar meu coração…”

(Chiquinha Gonzaga)

Cine-ópera

Vão dizer que não é o mesmo que assitir no teatro — e não é mesmo — e que as câmeras não favorecem o gênero teatral — o que é verdade em muitos casos mal dirigidos, mas em alguns outros há bons resultados. Só que poder assistir a uma montagem de ópera com qualidade internacional e elenco estelar, na telona do cinema, com som e imagens cristalinas em alta definição por 15 mangos (meia), desculpem, mas é sensacional.

La Sonnambula, de Bellini, com Nathalie Dessay e Juan Diego Flórez nos papéis principais foi um presente para começar a semana com os pés um pouco acima do chão. Vale a pena conferir a programação — eu já perdi três, argh! — e assitir algumas dessas montagens do Met porque, com certeza, pelo menos cada uma das passagens para assistir vai sair bem mais cara.

Porque às vezes é preciso ser triste

Longe de querer fazer apologia ao sofrimento, uma tristezinha às vezes cai bem. Foi o que eu vim conversando com os meus pés no caminho do cinema até em casa, por entre esquinas e caminhos tortos.

Assisti finalmente O Leitor. E não pretendo avaliar o filme — há várias outras palavras muito mais precisas que as minhas por aí — além do sentimento que ele me inspirou: tristeza. Tristeza em ver a vida desperdiçada. Tristeza nas escolhas, nos caminhos, na culpa, no arrependimento, na dor, no rancor, na incapacidade do perdão. Uma história em linhas tristes. Uma história que não é minha, mas é humana essa capacidade de criar ecos e eu chorei pela personagem, chorei com ela, imolada para expiar a minha própria tristeza.

É por isso que às vezes eu gosto de um bom filme triste. É pelo descarrego. É porque ele — assim como uma massagem consegue aliviar uma tensão quando não conseguimos relaxar — também tem o poder de descarregar nossas pequenas tristezas, os desgostos diários, aquelas pequenas porções de dor ou raiva que guardamos e não choramos porque, afinal de contas, nem é para tanto. Mas de onde vem, senão daí, a expressão lavar-se em lágrimas?

Hare Krishna

Quando não tiver mais nada
Nem chão, nem escada
Escudo ou espada
O seu coração acordará…

(Mantra, Nando Reis)

E acordei com meus olhos felizes a procurar a luz de cada canto. Tive sonhos de um amor improvável, mas em sonho possível — e o que importa? Ao invés de acordar rapidamente, conversei com esse sonho, entorpeci-me de suas cores.

Procurei aquele CD com músicas felizes que a tristeza me fez guardar em um recôndito fundo de gaveta. Fui injusto com ele. Não tive escolha, nem sempre a felicidade faz bem. Quando não se está pronto para ser feliz ou essa felicidade é datada, ela dói tanto quanto qualquer outra dor. E as minhas foram muitas, muito minhas. Mas eu aprendi a olhar para o céu dentro de mim. Entendi que felicidade é um desejo e que um desejo é realidade — a minha realidade. Mais ainda, uma alegria não se torna triste porque suas cores desbotam. Assim é o amor.

Veja a rosa, por exemplo. Mesmo que lhe tirem as cores, o viço e lhe caiam as pétalas. Mesmo olhando agora para esta flor que murcha lentamente no solitário em minha mesa, quando fecho os olhos ela permanece rosa. Assim como todas as flores que recebi, em flor ou não. Como um mantra.

Instantâneos delitos de paixão

Olhos nos olhos, borboletas no estômago, suor nas suas mãos urgentes. Tudo isso marcando uma inesperada cena de amor a dez passos do metrô.

— Você tá falando sério? — ela debocha.

Era uma vez o encanto. Passei pelos cacos e desci a escada, desgostoso como quem sai do cinema sem ter seu final feliz.

+

Um dia são teus olhos nos meus, em brasa — e mais nada. Outro, teu sorriso sem graça. Nosso caso daria um curta de comédia romântica, se tivesse romance.

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Sentiria inveja se não sentisse uma certa devoção por casais felizes. É como se eu observasse um pequeno milagre, perdido em mim com minha estesia; minha epifania.

(um pouquinho) Mais do mesmo

Eu confesso que estava quase caindo em tentação e ia comentar e citar novas e inquietantes declarações sobre o caso estupro-aborto-excomunhão, lidas algures. Mas a verdade é que nem a Santa se entende (se critica e se contradiz) — justiça seja feita que eu li um belo exercício de retórica vestido de compaixão (ou vice-versa) no jornal deles, mas aí desviamo-nos do fato. Pra que é mesmo que eu vou dar corda?

Eu vou é torcer pela menina.

Né?

Sabe por que eu adoro cartunistas? Porque enquanto eu estrebucho pra dizer o que penso, o que acho, tal e coisa, coisa e tal, eles fazem uma tirinha genial e encerram o assunto.

Tipo isso. Gênio. Obrigado, Angeli.

ange09032009

…et in terra pax hominibus bonae voluntatis

O chefe do departamento do Conselho Pontifício para a Família, do Vaticano, Gianfranco Grieco, afirmou que a decisão da Arquidiocese de Olinda e Recife de excomungar os responsáveis pelo aborto da menina de 9 anos — violentada em Alagoinha (a 230 km de Recife) — foi correta. A declaração foi publicada nesta sexta-feira pelo jornal italiano “Corriere della Sierra”. (Folha)

Aconteceu o que eu temia. Esta foi a semana dos absurdos — deve ser o calor, sabe; eu tô delirando. Tinha, né? Tinha que ser a Igreja Católica. Tinha que ir alguém lá e excomungar quem tá tentando salvar a vida de uma menina de 9 anos, que estava grávida de gêmeos e corria risco de vida porque foi estuprada pelo padrasto, de 23, que também estrupou a irmã dela, de 14, portadora de deficiências física e mental, e que as assedia há 3 anos. Eu não consigo imaginar um quadro mais dantesco.

“É muito, muito delicado, mas a Igreja nunca pode trair o seu anúncio, que é defender a vida desde a concepção até à morte natural, mesmo em face de um drama humano tão forte como o da violência de uma criança”, disse Grieco. (Folha)

Ah, não?! Que engraçado, eu jurava que foi essa mesma Igreja que bancou a dita Santa Inquisição, que condenou o sistema heliocêntrico, ameaçou e prendeu Galileu — um cristão fervoroso — e que queimou Giordano Bruno na fogueira, tudo em prol da “verdade teológica”. Que mais? Olha que a lista é vasta! Quer dizer que aborto em casos hediondos não pode, mas tacar fogo pode? Hipocrisia não é pecado?

Eu não sei excomunhão condena alguém ao inferno — considerando que essa pessoa acredite no inferno, claro —, mas eu espero que não. Já pensou, depois de tudo isso, ainda por cima ir parar no inferno e dar de cara com essa corja? Esconjuro!

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Um update. Ah, desculpa, mas não vai dar!

Ela comentou comigo, de bate-pronto: quer dizer que excomungar mãe e médicos (preocupados com a vida da menina, num sentido muito maior do que apenas a sobrevivência a uma gravidez de altíssimo risco) pode, mas excomungar um extuprador não pode?

Ontem, dom José declarou à reportagem que o aborto é mais grave que o estupro, e por isso a Igreja Católica condena o primeiro caso com a excomunhão automática. (…) “Católico que é católico aceita a lei da igreja. Quem não aceita é católico mais ou menos, e isso não existe”, disse. Para os médicos, a continuidade da gestação de gêmeos poderia ser fatal à menina, que pesa cerca de 30 quilos. (Folha)

Claro. Esse realmente é um argumento de peso. Pena que seja hipócrita, desumano, impiedoso e tão cristão quanto um tijolo.

“Tenho pena do nosso arcebispo, que não conseguiu ser misericordioso com o sofrimento de uma criança inocente, desnutrida, franzina, em risco de vida, que sofre violência desde os seus seis anos.” (Rivaldo Mendes de Albuquerque, 51, médico, católico praticante)

Pois é. Um excomungado é muito mais cristão do que um punhado de bispos. Será que é preciso dizer mais alguma coisa?